Introdução
A Reforma Tributária brasileira, aprovada em dezembro de 2023 através da Emenda Constitucional nº 132, introduz mudanças significativas no sistema tributário nacional. Entre as inovações mais relevantes está o mecanismo de “Split Payment” (pagamento dividido), que representa uma transformação na forma como os tributos sobre o consumo serão arrecadados no país. Este artigo analisa os fundamentos, a implementação e os possíveis impactos dessa nova sistemática no contexto jurídico e econômico brasileiro.
O que é o Split Payment?
O Split Payment, ou pagamento dividido, é um mecanismo de arrecadação tributária no qual, no momento do pagamento de uma operação comercial, uma parte do valor é automaticamente direcionada aos cofres públicos. No contexto da Reforma Tributária brasileira, este sistema será aplicado na cobrança do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que substituirão tributos como ICMS, ISS, PIS e COFINS.
Fundamentos Legais e Cronograma de Implementação
A Emenda Constitucional nº 132/2023 estabelece as bases constitucionais para o Split Payment, mas sua regulamentação detalhada ocorrerá por meio de leis complementares. De acordo com o cronograma oficial divulgado pelo Ministério da Fazenda, a implementação seguirá as seguintes etapas:
- 2024: Envio e aprovação das leis complementares que regulamentarão o IBS e a CBS, incluindo os mecanismos de Split Payment.
- 2026-2027: Início do período de teste, com alíquota reduzida da CBS (federal) e do IBS (estadual e municipal).
- 2029-2032: Implementação gradual do sistema, com redução progressiva dos tributos antigos e aumento das alíquotas do IBS e da CBS.
- 2033: Implementação completa do Split Payment, com a extinção definitiva dos tributos antigos.
Mecanismos de Funcionamento
O Split Payment funcionará principalmente através de sistemas eletrônicos de pagamento. Quando um consumidor realizar uma compra, o valor correspondente aos tributos será automaticamente separado e direcionado aos cofres públicos, enquanto o valor líquido será enviado ao vendedor.
Este processo será operacionalizado por meio de:
- Plataformas de pagamento eletrônico: Responsáveis por separar automaticamente a parcela tributária.
- Sistema Público de Escrituração Digital (SPED): Integrará as informações fiscais e contábeis.
- Comitê Gestor do IBS: Administrará a arrecadação e distribuição dos recursos entre estados e municípios.
Impactos no Sistema Tributário:
Redução da Sonegação Fiscal
Um dos principais objetivos do Split Payment é combater a sonegação fiscal. Segundo estimativas da Receita Federal, citadas pelo Ministério da Fazenda, a sonegação de tributos sobre o consumo representa cerca de 25% da arrecadação potencial desses impostos.
O economista Bernard Appy, um dos principais arquitetos da reforma, afirma que “o Split Payment torna a sonegação praticamente impossível nas transações eletrônicas, pois o tributo é recolhido no momento do pagamento, antes mesmo de chegar ao caixa do contribuinte”.
Simplificação da Fiscalização
A automatização do recolhimento tributário simplificará significativamente o processo de fiscalização. Conforme explica o tributarista Heleno Torres: “Com o Split Payment, a fiscalização deixa de ser predominantemente repressiva e passa a ser preventiva. O fisco não precisará mais verificar se o contribuinte recolheu o tributo após receber o pagamento, pois o recolhimento ocorrerá de forma automática e instantânea.”
Redistribuição da Carga Tributária
O Split Payment contribuirá para uma distribuição mais equitativa da carga tributária, reduzindo distorções causadas pela sonegação. Empresas que cumprem regularmente suas obrigações fiscais não mais enfrentarão concorrência desleal de sonegadores.
Impactos Econômicos:
Fluxo de Caixa das Empresas
Um dos pontos mais debatidos sobre o Split Payment é seu impacto no fluxo de caixa das empresas. Atualmente, muitas empresas utilizam o prazo entre o recebimento do valor do cliente (incluindo o tributo) e o recolhimento aos cofres públicos como uma forma de financiamento de curto prazo.
Com o Split Payment, este “empréstimo temporário” deixará de existir, o que pode afetar a liquidez de alguns setores. Segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI), setores com margens reduzidas e prazos longos de pagamento podem enfrentar desafios de adaptação.
Redução do Custo Brasil
Por outro lado, a simplificação tributária e a redução da burocracia devem contribuir para a diminuição do chamado “Custo Brasil”. Estudos do Banco Mundial indicam que empresas brasileiras gastam, em média, 1.501 horas por ano para cumprir obrigações tributárias, contra uma média de 317 horas nos países da OCDE.
A redução desse custo de conformidade pode liberar recursos para investimentos produtivos e aumentar a competitividade da economia brasileira.
Impacto no Mercado de Crédito
O Split Payment também deverá impactar o mercado de crédito. Com a redução da possibilidade de utilizar tributos como “capital de giro”, espera-se um aumento na demanda por linhas de crédito formais.
O Banco Central e o BNDES já estudam a criação de linhas específicas para auxiliar na transição, especialmente para pequenas e médias empresas.
Diretrizes Governamentais e Governança
O Ministério da Fazenda estabeleceu diretrizes claras para a implementação do Split Payment:
- Gradualismo: A implementação será gradual, permitindo adaptação dos contribuintes.
- Segurança jurídica: Regras claras e estáveis, com tempo suficiente para adaptação.
- Neutralidade: O sistema não deve aumentar a carga tributária total.
- Transparência: Informações claras sobre a arrecadação e distribuição dos recursos.
A governança do sistema será realizada pelo Comitê Gestor do IBS, composto por representantes dos estados e municípios, e pela Receita Federal, no caso da CBS. Estes órgãos serão responsáveis por:
- Definir alíquotas e regras operacionais
- Administrar a arrecadação e distribuição dos recursos
- Resolver conflitos e dúvidas dos contribuintes
- Fiscalizar o cumprimento das obrigações tributárias
Experiências Internacionais
O Split Payment não é uma inovação brasileira. Diversos países já implementaram sistemas semelhantes, com resultados variados:
- Itália: Implementou o Split Payment para pagamentos a entidades públicas em 2015, reduzindo significativamente a evasão fiscal do IVA.
- Polônia: Adotou um sistema voluntário em 2018, que se tornou obrigatório para certos setores em 2019, com resultados positivos na arrecadação.
- Reino Unido: Implementou um sistema específico para o setor de construção civil, reduzindo a sonegação neste setor.
A experiência internacional sugere que o sucesso do Split Payment depende de uma implementação cuidadosa, com atenção às particularidades de cada economia.
Desafios e Críticas
Apesar dos potenciais benefícios, o Split Payment enfrenta críticas e desafios:
Impacto no Capital de Giro:
Associações empresariais, como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), alertam para o impacto no capital de giro das empresas, especialmente em setores com margens reduzidas.
Custo de Implementação
A implementação do sistema exigirá investimentos em tecnologia e adaptação de processos, tanto pelo setor público quanto pelas empresas privadas.
Transações em Dinheiro
O Split Payment é mais eficiente em transações eletrônicas. Para pagamentos em dinheiro, serão necessários mecanismos complementares de fiscalização.
Recomendações para Empresas
Diante das mudanças previstas, recomenda-se que as empresas:
- Planejem-se financeiramente: Avaliem o impacto no fluxo de caixa e busquem alternativas de financiamento.
- Invistam em tecnologia: Adaptem sistemas para integração com as plataformas de Split Payment.
- Capacitem equipes: Treinem colaboradores para compreender e operar no novo sistema.
- Busquem assessoria jurídica especializada: Contem com apoio profissional para navegar pelas mudanças regulatórias.
Conclusão
O Split Payment representa uma transformação significativa no sistema tributário brasileiro, com potencial para reduzir a sonegação fiscal, simplificar a fiscalização e promover maior equidade tributária. No entanto, sua implementação bem-sucedida dependerá de um planejamento cuidadoso, considerando os impactos no fluxo de caixa das empresas e as particularidades da economia brasileira.
A transição gradual prevista na Reforma Tributária oferece tempo para adaptação, mas exige atenção imediata de empresas, profissionais e gestores públicos. O acompanhamento das regulamentações complementares e o diálogo constante entre setor público e privado serão essenciais para garantir que os objetivos da reforma sejam alcançados com o menor custo de transição possível.
Referências
- BRASIL. Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023. Altera o Sistema Tributário Nacional.
- MINISTÉRIO DA FAZENDA. Diretrizes para implementação da Reforma Tributária. Brasília, 2024.
- APPY, Bernard. A Reforma Tributária e o Split Payment. Revista de Direito Tributário Contemporâneo, v. 25, 2024.
- TORRES, Heleno. Direito Tributário e a Nova Ordem Fiscal Brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024.
- BANCO MUNDIAL. Doing Business 2023: Measuring Business Regulations. Washington, 2023.
- RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Estimativas do Gap Tributário no Brasil: 2020-2022. Brasília, 2023.
- CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA. Impactos da Reforma Tributária no Setor Produtivo. Brasília, 2024.
- OCDE. Consumption Tax Trends 2023: VAT/GST and Excise Rates, Trends and Policy Issues. Paris, 2023.